“Vontade de controlo da história” impede acesso aos arquivos
Indignação e surpresa foi a reacção de alguns investigadores perante o chumbo, pelo Parlamento português, da desclassificação dos arquivos das guerras de libertação. O que há para esconder? Foi o que tentámos perceber junto de Raquel Schefer e Franco Tomassoni, dois investigadores que se confrontaram com a inacessibilidade de vários arquivos ao longo do seu trabalho.
O projecto do Bloco de Esquerda de desclassificação dos documentos relativos ao período de 1961 a 1974, na posse dos arquivos históricos das Forças Armadas, foi chumbado no Parlamento português a 26 de Janeiro. O projecto mereceu os votos contra do PS, PSD e Chega. A favor votaram o PCP, PAN e Livre. A Iniciativa Liberal absteve-se.
Raquel Schefer, professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle, considera que há “uma vontade de controlo da história e de reiteração de uma narrativa oficial” para perpetuar o que chama de “história completamente falsificada” relativamente ao colonialismo português e à repressão das guerras de libertação. Franco Tomassoni, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, diz que o Estado português está “a tentar preservar-se a si próprio”. Vedar o acesso aos arquivos não será, afinal, admitir que Portugal quer manter um certo “apagão histórico”?
“Eu própria durante o meu processo de investigação me confrontei à inacessibilidade de alguns arquivos e fiquei bastante surpreendida com o chumbo. Penso que esse chumbo se deve, por um lado, a uma vontade de controlo da história e, por outro lado, de reiteração de uma narrativa oficial que perpetua certos pressupostos relativos ao colonialismo português e à repressão das guerras de libertação pelo Estado colonial e fascista português”, começa por descrever Raquel Schefer.
Mas, afinal, o que está fechado a sete chaves? A investigadora responde, de imediato, que “há para esconder todos os massacres que ocorreram durante e antes das guerras de libertação” e não apenas o massacre de Wiryiamu, em Moçambique - cuja existência foi reconhecida, pela primeira vez, em 50 anos, em Dezembro passado, pelo governo de Lisboa - porque “houve muitos outros”. Em Wiryiamu, pelo menos 385 civis foram assassinados a 16 de Dezembro de 1972 mas, em Moçambique, por exemplo, a repressão mais visível começou com o massacre de manifestantes que exigiam melhores condições de trabalho, em Mueda, a 16 de Junho de 1960.
“Eu penso que se pretende, por um lado, proteger as Forças Armadas portuguesas e, por outro lado, perpetuar esses mecanismos de controlo e perpetuação de uma história completamente falsificada na medida em que, num certo sentido, se tenta legitimar as guerras que decorreram em África nos anos 60 e 70”, considera Raquel Schefer.
A investigadora acrescenta que “o facto de só se falar de Wiryiamu acaba por esconder a multiplicidade e a complexidade dessa história de opressão” e sublinha que “dar tanta centralidade a esse caso específico esconde toda a série de massacres precedentes e posteriores, mas também os massacres que ocorreram já no período de transição, entre 74 e 75, como o massacre de Inhaminga, por exemplo”. Além disso, esta narrativa pode escamotear “toda a história de resistência e o paradigma de emancipação dos movimentos de libertação que hoje em dia foi praticamente excluído do espaço hermenêutico”, sublinha.
Franco Tomassoni também teve “uma certa dificuldade em aceder aos arquivos” porque “ainda há muitos documentos classificados que poderiam ter aberto pistas para investigações interessantes e temas inexplorados”.
“Não é apenas a questão de se chumbar a desclassificação dos arquivos relativos exclusivamente aos massacres e à violência que as forças coloniais perpetuaram pela repressão dos movimentos de libertação. Claramente esse é um tema central e algo muito invisibilizado ainda hoje do debate público português, mas há um outro lamento. É o Estado a tentar preservar-se a si próprio porque durante a Guerra Colonial há uma circulação muito importante entre conselhos de administração de grandes empresas e militares de alta patente e representantes da diplomacia portuguesa. Apesar de tudo e apesar da Revolução de Abril, continuou a existir uma certa ideia de uma certa rectidão moral do Estado Novo que nunca teve grandes escândalos de corrupção, por exemplo. Falta completamente uma documentação sobre estes elementos”, explica o investigador.
A memória das guerras de libertação pode, ainda, ser traumática e, talvez, comprometedora. Foram precisos 50 anos para que um primeiro-ministro português admitisse que o massacre de Wiriyamu existiu e para pedir desculpa. Porém, o mesmo discurso apontava o massacre como algo excepcional, como se fosse um ponto obscuro numa história muitas vezes considerada como “mais branda” do colonialismo português. O colonialismo português foi mesmo “mais brando”? Ou esta foi a retórica repetida pelo Império e que até hoje impera, pelo menos junto da opinião pública? E estará este discurso ameaçado pelas pesquisas junto de arquivos ainda protegidos?
“Como se sabe, a partir de uma dada altura, o colonialismo amparou-se no lusotropicalismo para justificar a prevalência das colónias num contexto de descolonização após a Segunda Guerra Mundial. A descoberta de arquivos que venham corroborar as narrativas, também elas amparadas em dispositivos historiográficos e epistemológicos dos países libertados, a descoberta desses elementos virá pôr ainda mais em causa esse suposto carácter brando do Estado Novo e do colonialismo português”, acrescenta Raquel Schefer.
A investigadora sublinha que um outro aspecto, retratado no filme “48” de Susana de Sousa Dias, é o facto de que “além dos massacres perpetrados durante e antes das guerras de libertação contra populações civis, também há o destino dos presos políticos africanos que foram altamente reprimidos e torturados” não só em Portugal mas também nos países africanos onde “a tortura chegou a um grau muito mais extremo”. Ou seja, “a desclassificação desses arquivos viria revelar alguns elementos sobre essa questão”, até porque nesse documentário, premiado com o Grand Prix do Cinéma du Réel, em Paris, em 2010, a realizadora Susana de Sousa Dias “não conseguiu descobrir qualquer documento administrativo, fotográfico sobre os presos políticos africanos”.
Ter acesso a novas provas e a arquivos longamente silenciados, voluntariamente ou não, poderá fazer reescrever a historiografia e desmentir uma certa história oficial? Raquel Schefer nao tem dúvidas que sim e aponta a teorização de Jacques Derrida sobre a questão do arquivo [“Mal d’Archive”] ao lembrar que “os arquivos são sempre estruturados por relações de saber e poder e que o controlo dos arquivos é uma operação de natureza altamente política”. A investigadora diz que seria importante aceder-se também aos arquivos na posse dos Estados que foram colonizados e lembra que “no caso do cinema há arquivos importantíssimos para se poder complexificar a história do processo de construção do Estado-Nação moçambicano que desapareceram”.
“Penso que o acesso a esses arquivos, tanto do lado do Estado português como do lado dos Estados-Nação africanos, seria importantíssimo para complexificar as aproximações históricas a esse período e para a produção de uma contra-história em oposição às narrativas oficiais”, argumenta Raquel Schefer.
Além do acesso a todos os arquivos, fica a questão do que é que há nesses arquivos e o que é que desapareceu ou foi destruído. A investigadora acredita que “muitos arquivos terão sido destruídos nesse período de transição entre 74 e 75 em Moçambique e em Angola”, por exemplo.
Oiça a entrevista neste programa.