Entre burocratas nostálgicos, arrivistas e embusteiros. Outra conversa com António Brito Guterres
As eleições não passam hoje de um teatro que nos permite enternecermo-nos connosco próprios, com a degradação da nossa condição política, fornecendo uma liturgia sentimental, um gesto de auto-comiseração cívica. O voto tornou-se um placebo de pertença, e, ao sair da cabine, reconfortados, acreditamos ter feito algo, ter participado... Votamos como quem acende uma vela à memória do livre-arbítrio. Ali procuramos, com devoção arqueológica, os traços do antigo rosto humano da história. Cada boletim é um pequeno ex-voto ao passado, um souvenir da época em que o mundo ainda parecia responder à vontade humana. No acto de escolher, fingimos que há escolha; no cerimonial da urna, representamos a nostalgia da soberania, a crença de que a história ainda nos consulta. O eleitor é um espectro devoto que, numa função rememorativa, visita o túmulo da liberdade e depõe uma flor. As eleições são, assim, uma forma de terapia colectiva, servindo para converter a impotência em fé cívica. Ali, o sistema concede-nos o consolo da forma, enquanto decide, em silêncio, a substância. O voto é o modo mais resignado de nos reconciliarmos com a nossa irrelevância. Enquanto isso, o poder transfere-se, e talvez nunca se tenha decidido tão longe, tão alheio às nossas urgências. A revolução hoje é algorítmica: não se faz nas ruas, mas nas camadas invisíveis do código. É o próprio capital que programa a mutação perpétua do mundo, dissolvendo as formas estáveis da vida, da linguagem, da percepção. Nenhum comité central, nenhum messias, nenhum discurso inflamado; apenas redes, fluxos, instruções que se multiplicam como insectos luminosos no interior da máquina. Os novos Lenines não precisam de povo — bastam-lhes dados, e a vertigem do controlo. São criaturas que emergiram das fendas do sistema financeiro global, após a última crise de liquidez ontológica: seres anfíbios que aprenderam a respirar no vazio e a nutrir-se da volatilidade. O capital, esse demiurgo sem moral, descobriu o modo de acelerar o tempo, de converter cada partícula de vida em movimento, cada átomo de desejo em fluxo. O que chamamos “crise” é apenas o batimento cardíaco do sistema, o seu ritmo vital. As ruínas são o seu habitat natural, e nelas se move com a destreza de um vírus que aprendeu a usar o próprio sistema imunitário do hospedeiro para se multiplicar. Trata-se de uma inteligência adaptativa, uma espécie de parasita que aprendeu a metabolizar o desastre. Tudo o que o ameaça é reabsorvido como matéria de inovação. Assim, as novas lideranças são híbridos de misticismo empresarial e pornografia mediática: evangelistas de produtividade, profetas do desempenho, pornógrafos do sucesso. Falam de propósito, de regeneração, de transcendência… Embusteiros, efabuladores, mestres do reviralho, alquimistas do lucro ilusório, pregadores de volatilidade, xamãs do derivado, domadores de zeros e uns, arquitectos de bolhas espectrais, cartógrafos de ruínas financeiras, faquires do fluxo de capital, ilusionistas do valor, conspiradores do invisível, buriladores de consciência colectiva, mercadores de promessas quebradas, prestidigitadores da percepção, manipuladores de massas digitalizadas, embalsamadores de sonhos líquidos, taumaturgos do risco e da especulação, poetas da fraude, sacerdotes da liquidez, prestidigitadores da ontologia mercantil, e profetas do caos desregulamentado. O lucro tornou-se um sacramento; o poder, um êxtase. Entretanto, a esquerda, paralisada pela nostalgia da sua própria moralidade, converteu-se numa administração técnica da catástrofe. Gere as ruínas comovida consigo mesma, sendo prudente, enquanto o capital prossegue o seu labor alquímico de dissolução total. Defendendo o humano, o sustentável, o limite e a lógica, esta esquerda responsável tornou-se o elemento conservador de um sistema cuja energia vital é a transgressão. A sua resistência ética funciona como suplemento moral: o espelho que legitima o adversário. Sem ela, o capitalismo perderia a imagem de inevitabilidade que o alimenta. O que resta da esquerda é um sentimentalismo de gestão, um humanismo protocolar. E neste momento o capitalismo atinge, enfim, a sua fase gnóstica: já não produz mercadorias — produz mundos. A cada iteração fabrica não apenas novos mercados, mas novas percepções, novas realidades. A informação converteu-se em matéria-prima da existência, e a finança especulativa é agora a metafísica do nosso tempo. Os seus operadores são os novos xamãs da volatilidade: manipulam não apenas números, mas as condições de percepção, fabricam e desfazem o real como se este fosse uma bolsa flutuante. A fraude não é desvio ético: é o seu método e a sua fé, a sua gramática e o seu fôlego. O que era sólido já não se dissolve simplesmente no ar, antes serve para aprimorar o interface. O sujeito, fragmentado, responde em reflexos: reage, partilha, vota, comenta. Pouco mais faz. Tornou-se mais uma entre inúmeras existências parcelares, respondendo celularmente ao estímulo. Cada gesto individual é absorvido, reinterpretado, reprogramado, e essa constante digestão da experiência constitui o verdadeiro poder — um poder sem rosto, sem centro, sem consciência, mas revolucionário na sua continuidade, porque reinventa incessantemente as condições do mundo, sem nunca precisar de um sujeito que o deseje. Deste modo a utopia tornou-se indistinguível da especulação, e a imaginação política foi convertida em derivado financeiro. A revolução venceu, mas ao serviço do capital, e o triunfo é de tal modo absoluto que já ninguém o reconhece como tal. Neste episódio e para não nos ficarmos pelo tipo de análise que apenas rodeia esta fantasmagoria, quisemos deixar a ressaca, puxar o lençol e sacudi-lo, pô-lo a arejar. Para nos ajudar a escapar das grelhas de quem comenta mais este episódio da telenovela apegado ao regime mais emocional, pedimos a assistência a um operador que conhece bem o território, a relação directa entre aqueles que preferem fundar a realidade cosendo os pedaços da vida no seu quotidiano, cortando com este quadro de anemia existencial. Mestre sem grandes cerimónias, António Brito Guterres deu-nos guarida e fez-nos a visita guiada pelo seu museu privado, repleto de instrumentos de corte de luz e dos outros sistemas.