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Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Enterrados no Jardim
Último episódio

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5 de 107
  • Das tribos do cinema ao humor corporativo. Uma conversa com Beatriz Silva Pinto
    Depois do terror, segundo ouvi dizer, as crianças aprendem a ver no escuro. É uma espécie de talento que nasce da necessidade de controlar a proliferação de imagens que o medo nos sugere. São cineastas dessa circunstância intolerável. Porque o escuro admite o pior. Da mesma forma há quem fale consigo mesmo, procure uma ordem qualquer de que se possa ocupar, às vezes retoma uma conversa mal resolvida, responde a alguém, confronta uma e outra vez o seu exausto repertório de truques, vai buscar cenas, planos de filmes e investiga tudo aquilo que sem se ter dado conta aprendeu de cor, a posição de cada objecto, que agora adquirem uma estranha densidade, um peso extraordinário. Saber convocar o sono é um dom, combater uma circunstância desfavorável, escavar um túnel a partir da cela do tédio. Era assim que Cyril Connolly explicava a necessidade da arte, defendendo que esta “é a tentativa mais nobre do homem para preservar a Imaginação do Tempo, para fabricar brinquedos mentais inquebráveis, bolos de lama que durem”… O cinema é um assunto das infâncias que mais foram obrigadas a escarafunchar certas feridas, a aguentar a imensa desolação da realidade, sobretudo para quem tem uma natureza atenta. O cinema é esse território dos mudos, dos que aprendem o valor de um enquadramento, de uma sequência, dos cortes, da montagem. Os que se deram ao trabalho de fazer do olhar uma lição de história. Se a uma criança, quando lhe perguntam o que quer ser quando for grande, nunca ouvimos a resposta – “Vou ser crítico de cinema” –, como notou, certa vez, François Truffaut numa entrevista, talvez isso se explique por estar longe de supor que haja outros que não precisam de mais estímulos, pois fizeram da memória o seu projector, e tiram prazer de fazer do cinema o motivo de longas exposições, conversas infinitas. São muitos, na verdade, os que se encontram na mesma situação, consideravelmente treinados desde crianças a ver filmes, a pensar sobre eles e, mais tarde, com os anos, ao encontrarem a sua tribo, a falar deles, a discorrer durante horas sobre cada detalhe, mas depois, até por esse excesso, são incapazes de passar para o outro lado, ter a audácia ou a veleidade imbecil de fazer um filme. Há uma espécie de erudição culpada, que em vez de iluminar, pesa intimamente. Em vez de se transformar num balanço atrevido, acumula-se como dívida, pede imensas desculpas, retira-se. É o saber do crítico que lê demais, vê demais, anota demais — e escreve de menos ou escreve como se estivesse sempre a dever explicações. É um saber que se constrange, que se encurva. Em vez de cortar na carne da obra, contorna-a com aparato técnico, com um dicionário em punho e medo de parecer ingénuo. Esquece, assim, que a verdadeira erudição é leve, ofensiva, cortante. Esta é a condição do espectador que perdeu a inocência e, com ela, a coragem de errar, de improvisar, de sentir sem aparato. Guillermo Cabrera Infante fala-nos de um crítico que sentia necessidade de atafulhar cada texto de um tal excesso de referências que, para lá do alarde da erudição, lhes emprestavam uma morbidez própria de quem gosta de arrastar cadáveres ou trocar restos entre túmulos, fazer combinações bizarras nas horas de tédio em que lhe é dado zelar por um desses arquivos que aguardam a completa digestão das larvas. Vale a pena reproduzir o texto… “Caín gostava de fazer frequentemente um grande alarde erudito. A sua erudição chegava ao ponto de dizer que H. C. Robbins Landon estava a completar o catálogo total da música de Haydn; que Tchékhov conheceu Tchaikovsky em São Petersburgo, no início de Dezembro de 1888; que a modelo preferida de Delacroix se chamava Émilie Robert; que, se o jazz nasceu nos bordéis de Nova Orleães, foi a ordem da Secretaria da Marinha norte-americana, em 1917, ao encerrá-los, a ocasião para a sua difusão e desenvolvimento posterior. Etc. Parece-me que Caín encontrava estas citações ao acaso, nas suas leituras caóticas e, por isso mesmo, múltiplas, e que as ia anotando nas críticas à primeira oportunidade, viessem ou não a propósito. Um dia disse-lho. A resposta dele deixou-me gelado (tão gelado que, se tivesse tido sabor, não estaria aqui a contar isto: estávamos à porta de uma escola), porque respondeu-me com uma citação de Chesterton: ‘Afinal, creio que hoje não me vou enforcar’, foi o que disse.” Onde queremos chegar? Essa costuma ser uma interrogação bastante cruel. Talvez ainda seja o mesmo problema do início, a criança que faz filmes para si, inventa o cinema para não ser absorvida pelo escuro. Neste episódio, vamos traçar um percurso entre esse desejo de ser encantado, entre a descoberta do cinema como arte produtora de uma memória defensiva, e um enredo formidável de correspondências, imagens que nutrem uma espécie de sistema imunitário e de resposta da imaginação contra circunstâncias infamantes. Nessa linha que vai de um cinema paraíso à degenerescência dos que só conseguem tratar as fitas como oportunidades para levarem a cabo processos de dissecação, contámos desta vez com Beatriz Silva Pinto, que além de trabalhar no Cinema Batalha, tem uma relação empenhada com esta arte, e uma perspectiva pouco cínica das possibilidades de expansão que nos oferece, desde logo enquanto antídoto face à dissolução das comunidades, e ao retrocesso dos espaços de encontro e resistência a um quotidiano cadaveroso.
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    4:08:25
  • Assalto à Biblioteca Nacional com a bandeira pirata de Luiz Pacheco
    Num mundo coagulado, num tempo viscoso, em que só se podia andar aos tropeções, isto quando outros marchavam, cercavam, se punham em cima para que ninguém deixasse de se sentir deglutido, embrutecido, sem conseguir fazer outra ideia da vida, e ao menor esforço logo se sentisse ofegante, assim mesmo ainda houve um que outro a recusarem viver esse pesadelo da lentidão e da impotência, esse enfado dos órgãos. Houve quem fosse capaz de ver as coisas através da sua fadiga, e escavar à unha o seu penhasco. A ele ainda lhe ouvimos o passo nervoso, aquele seu canto de sereia roufenha, experimentada, abusiva. Aquela voz de miúdo, reinando com tudo e todos. Conhecemos muito bem o perfil, mesmo que não nos tenhamos chegado a cruzar pelas ruas com esse bicho escarolado, ficou-nos um rastro que não perdeu nada do seu calor. Quanto ao meio literário como ele o viu e mostrou, desde a sua morte fechou-se ainda mais nos seus cálculos e apostas, e, por estes dias, ao homem de letras já nem se pede que seja minimamente consequente, que pense alguma coisa, nem que procure dar testemunho do seu quinto dos infernos. Tudo refocila na mesmice, e assim, no limite, como assinalava Le Clezio, “toleram-se no escritor, no artista certos desvios, apenas na condição de poderem ser recuperados, e de essa liberdade jactanciosa poder ser confundida no interior da totalidade literária: simples concessões à moda, ao espírito do público, que é preciso saberem fazerem-se sob pena de se ser ignorado”. “E o que vem a ser um escritor que não seja lido?”, interroga ele. A suprema habilidade de Pacheco foi ter sabido dizer tudo o que queria e como queria, num pacto incerimonioso em que deixou que o tomassem por esse delinquente que serve só o consumo quotidiano do mal que o bem se autoriza. A verdade é que ao colaborar nesse número, foi ganhando margem, gozando o prato como um escritor excluído da ordem beneditina, e que, se passou mal, e tantas vezes se viu condenado a encarnar esse mal que o bem social inventa e de que necessita para a sua autopurificação, à medida que os anos foram passando, quase todos os grandes vultos, os santarrões que se acotovelavam nos nossos altares, foram caindo e desfazendo-se em cacos, e ele, com aquela sua biografia desabusada, em tantos momentos particularmente amarga, passou a representar essas noções que se aguentam de pé, acabando mesmo por se ver engolido pela ordem cultural que tanto fez por esbarrondar. O seu imenso romance desbocado ainda anima e arrepia, continua a dar lições sobre o atrevimento e essa força de quem não deixa nada por dizer, e mesmo se o fez a partir de um ângulo de absoluta subjectividade, hoje os seus juízos tendem a converter-se em denominador. Possui um nome que não deixa de ser repetido com uma frequência assombrosa em todo o lado, um nome que serve como uma praga. Mais do que um maldito, Pacheco ganhou entre nós o estatuto de uma maldição. E, no entanto, está longe de se ter convertido num desses grandes nomes, não se regenerou, por mais que algumas almas cândidas pretendam extrair-lhe à força uma moral, vendendo a banha da cobra subversora, como se a própria literatura não pudesse ser senão uma instituição redentora. Pelo contrário, para aqueles que se viram para ele buscando o raro alento que anima a insolência, sabem que a seriedade desta escrita se mede pela forma como incita o género de ataques que lixam a fulanada, a dos fornicoques justiceiros que temem ainda um regime de crónica cruel e rude, deixando a mula beletrista pela fúria rumorosa que cresce de um desabafo. Ora, o Pacheco não pedia desculpa de estar vivo e a escrever, como também nunca quis dar ele a missa, mesmo se admitia que a sua “memória regressiva tanto dava para o torto (as sacanagens) como para o actos de cristandade laica”. E agora, num momento em que mais do que ordenar, exaltar e autopsiar, o mais premente mesmo era trazê-lo por junto de volta ao nosso convívio regular, depois de lhe termos cosido pedaços das muitas partes, num volume que, antes de mais, o que quer é ter-se de pé sem apoio de espécie alguma, até para fazer de tijolo e estar apto a quebrar janelas, lá subimos à torre, fomos directamente ao buffet com o nosso prato deslavado, e se não deu para encher o bandulho, tentámos capturar a bandeira deixando, para a troca, umas enormes cuecas que levassem o vento por cima da Biblioteca Nacional a fazer caretas de todo o tamanho. Fica aqui o registo da apresentação que teve lugar esta tarde, e segue assim como um episódio extra, com as participações de Marta Félix, João Pedro George e Diogo Ramada Curto, entre outros.  
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    2:23:35
  • As cenas do crime. Uma conversa com Joana Manuel
    Dizem que se escuta um estranho silêncio uns momentos antes. Os desastres respiram fundo. A terra sabe-o. Fica tudo quieto, na expectativa. É assim antes dos terramotos e de outros abalos naturais. E há uma nota colhida à margem de uma obra poética dessas que estão sempre a assediar a beleza, buscando legitimar-se, mas que depois mal podem pagar as dívidas face a uma informação clara e incisiva, e que precisam de ir colher noutro lugar: “Quando morremos, a audição é o último sentido a desaparecer.” Talvez busquemos até ao fim, e no limite das nossas capacidades, essa qualidade que torna estranho um silêncio, e que serve como um aviso que nos toca a todos por igual. A inteligência é um subterfúgio. Na verdade, as necessidades mais profundas são animais. Rilke parece intuir isto numa das cartas para Lou: “Noutros tempos, cheguei, por vezes, a interrogar-me por que motivo os santos queriam tanto infligir a si próprios tormentos corporais; só agora compreendo que esse gosto do sofrimento até ao martírio era uma manifestação da urgência, da impaciência de não mais voltarem a ser interrompidos, nem incomodados, inclusivamente pelo que lhes poderia acontecer de pior. Tenho dias em que não aguento ver pessoas, com medo de que rebente nelas uma dor capaz de lhes arrancar gritos, tão forte é a minha angústia de que o corpo, como frequentemente acontece, abuse da alma, que nos animais encontra o seu repouso, mas a segurança só nos anjos a pode encontrar.” Estamos destreinados de tanta coisa que em tempos nos foi crucial. Fomos perdendo a prática, esse balanço constante que trazíamos e que servia já como um impulso fosse em que sentido fosse. Ser homem podia então implicar de raiz um certo empenho, uma relação contundente. E talvez, para nos habituarmos de novo à mudança, rompermos esses casulos onde nos fechámos, pudéssemos impor às nossas conversas um movimento, para trazer para dentro delas nem que fosse a inconstância do cenário. Ao fim de algumas horas, e abdicando de um roteiro claro, poderíamos dar por nós em zonas inesperadas, que acabariam por se intrometer na conversa. “Onde estão os antigos debates, o velho pó?”, questiona Etel Adnan. “Os Sufis costumavam viajar de Múrcia para o Cairo – nas alturas – usando como combustível o poder da sua vontade (se os pássaros conseguem fazê-lo, porque não eles?). O real deve ter significado as milhas que percorreram, e apenas isso. Por baixo deles, o chão a tremer.” Já seria uma forma de nos arrancarmos ao elemento da constância e previsibilidade que nos envolve e absorve, que se tornou a verdadeira textura da realidade quotidiana. A tarefa seria, assim, inverter esta tendência para ficarmos reféns de uma aventura diminuída, diluída, fragmentada, que apenas nos deixa “uma dor fugitiva, quase inacessível à consciência e que não deixa no espírito mais do que uma surda irritação dificilmente capaz de descobrir a sua origem” (Vaneigem). Também as nossas ideias levantariam outro pó se estivessem habituadas a mastigar distâncias no seu compasso. Uma inclinação para a épica nasce com esses relatos que atravessam fronteiras e trazem impressões daquilo que não se vê daqui. “Montanhas levantam-se em nós, tal como a linguagem, fazendo da analogia uma parte intrínseca do pensamento (portanto, do ser)”, adianta Adnan noutro dos seus subtis aforismos. Neste episódio, a nossa convidada, também há muitos anos a tentar fazer sentido da sucessão dos ciclos, e procurando afectar o mundo em vez de ceder ao registo de tantos que se limitam a lubrificar beatamente as partes que lhes cabem do aparelho com a sua contestação formal, veio falar de como têm vindo a estreitar-se os caminhos possíveis para um artista, para alguém que entrega o corpo a uma participação e tenta ferir o isolamento ao qual nos vamos entregando. Joana Manuel é actriz, assume-se queer, mesmo se não sente necessidade de levar à linha os regulamentos de quem entende que a construção de uma diferença passa sobretudo por corresponder a uma qualquer vontade de pureza ontológica. Foi uma conversa em volta de uma mesa, mas com a insegurança de um caminho que temos percorrido cada vez com maiores suspeitas, sem o respaldo de um horizonte ou de tabuletas, um modo de percorrer-se a si mesmo, ansiosamente, como quem busca uma saída.
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    4:04:29
  • "Sperma retentum venenum est". Uma conversa com António de Castro Caeiro
    Por mais que goste de exibir a sua perpétua avidez, a glutonice deste tempo sacia-se depressa, e o ciclo repete-se sem margem para desvios. É um tempo avesso a grandes proclamações, ainda que esteja ansioso por distracções, catástrofes que o venham beliscar, mantendo-se desperto com recurso a uma teatralização que abusa do som e da fúria, e fazendo do quotidiano um tédio constante com vista sobre o abismo. Esta esclerose gradual da existência estabelece um paradoxo fundamental entre, por um lado, os tremendos abalos que se verificam na perspectiva global, e, por outro, a monotonia e todo este espectáculo que alimenta uma espécie de pavor, reforçando a passividade na vida de cada um. Uma condição política de coacção baseia-se em encenações cada vez mais vigorosas, escândalos prefabricados, como vincava Raoul Vaneigem, esses "gestos privados de substância em proveito de uma ilusão cujo encanto perdido torna dia a dia mais odiosa. Gestos fúteis e mortiços à força de terem alimentado brilhantes compensações imaginárias, gestos empobrecidos à força de enriquecerem altas especulações nas quais entravam como criados para todo o serviço sob a categoria infame de 'trivial' e de 'banal', gestos hoje libertados e desfalecidos, prontos a perderem-se de novo sob o peso da sua fraqueza. Aqui estão eles, em cada um de vós, familiares, tristes, entregues recentemente à realidade imediata e movediça, que é o seu meio 'espontâneo'. E aqui estão vocês, perdidos e comprometidos num novo prosaísmo, numa perspectiva na qual coincidem o próximo e o longínquo." Mal mergulhamos na substância dos discursos pretensamente esperançosos, bem intencionados, reconhecemos todo esse vazio de quem se serve das palavras apenas para se anestesiar. Se em tempos Vaneigem pressentia que não era tanto a morte aquilo que aterrorizava os homens do século XX, mas antes a ausência de verdadeira vida, hoje nada parece aterrorizar mais os homens do que a perspectiva de uma vida realmente tumultuosa, implicada, combativa. Pagamos o preço por toda esta covardia acumulada que exprime a realidade quotidiana. Eis como Herberto Helder punha as coisas: "A época é literal e conformista. Divertir-se é quase obrigatório. Há juízes, julgamentos, justiças, jus­tificações — há episódios por todos os lados para a gente rir, e depois a gente vai para casa e se porventura conservou limpas as suas fontes entrega-se jubilosamente a confundir a vigência: a gente desfaz e refaz as coisas, a gente diz: inven­ção, imaginação, inovação — e sem dar por isso encontra-se em estado excelso de irrespon­sabilidade social, sente-se responsável consigo apenas." E como aquele escritor belga central ao movimento situacionista vincou, "não se substitui impunemente o cio da salvação eterna por pequenas masturbações privadas". Não sendo uma época vitalista, mas antes uma que se define por sucessivos recuos amedrontados, houve poetas que vislumbraram uma única saída para este estado de coisas. Leia-se uns versos do poema "Vinte e quatro horas", de Raul de Carvalho: "Eu vos digo que é tarde, demasiado tarde/ Para principiar/ A exercer justiça:/ O número dos mortos já excede/ O tamanho da terra (...) Eu vos digo que já não temos tempo/ Senão para a vingança." Mas até para se vingar o homem precisa de alguma imaginação, de algum requinte, alguma perfídia. Em vez de grandes conspirações, restam essas pequenas células, uma sabotagem constante planeada por cada um, quase a ponto de ser essa a sua confissão particular. Como assinalava Vaneigem, ainda que os grandes movimentos de transformação social e política devessem ser pensados como respostas solidárias, fazendo valer a força dos números, "no momento revolucionário cada homem é convidado a fazer a sua própria História". Talvez isso possa ser aquilo de que se ocupam os poetas, ou, pelo menos, os grandes. "Estou no centro de mim próprio", confessava o génio egoísta que era Herberto... "não me interessa este mundo da justiça de fora, o mundo dos juízes e julgamentos, não me inte­ressam as justificações do mundo: estou só. Leva-se até ao extremo o divórcio libertador, é impon­derável quase o trabalho de atingir o extremo pessoal. Em poucas épocas foi tão simples estar contra tudo, os outros, a nossa facilidade que se mostra nos outros, a tentação dos outros." Vamos vaguear por noções destas, e, para nos acompanhar, neste episódio contámos com a generosidade de António de Castro Caeiro, que tem vivido de um balanço vastíssimo, de uma convivência com os espíritos mais antigos e dotados de uma juventude que o mundo não soube ainda como envelhecer e degradar, regressando a eles em busca de modos de reinventar o próprio "homem" nestes períodos de dissolução dos horizontes. Poderíamos ter beneficiado mais dessa prática de estudo e construção filosófica, não estivéssemos tão mordidos e dominados pela febre da actualidade...
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    4:31:23
  • Alice no País das Finanças. Uma conversa com Ricardo Paes Mamede
    Não anda longe o momento da atomização absoluta, da conversão de cada um de nós em figuras que se diluem num espelho programado, numa miragem que nos absorve como Narcisos do curso de águas digitais. Há coisas que não se podem traduzir, nem espelhar entre mundos, sob o perigo obscuro de se produzir um reflexo subtilmente monstruoso e que pode bem contaminar ou assombrar o original. Mary Shelley disse algo nesta linha, mas de forma tão astutamente memorável que a frase se torna em si mesma um narcótico: "We are unfashioned creatures, but half made up, if one wiser, better, dearer than ourselves — such a friend ought to be — do not lend his aid to perfectionate our weak and faulty natures." (Somos criaturas imperfeitas, meio inventadas meio incompletas, perdemo-nos se alguém mais astuto, e que nos é mais querido até do que somos para nós próprios — como é suposto que um amigo seja — não estender os seus cuidados à nossa natureza fraca e imperfeita.) Precisamos de figuras por quem possamos nutrir uma admiração sincera. Hoje, e num momento de projecções contaminadas pelo poder, que apenas são capazes de se organizar segundo estratégias de valorização, de ambição e promoção pessoal, as relações tendem a ser construídas em função de um ganho imediato, mas o poder, como assinalavam os situacionistas, neutraliza a linguagem: "Sob o domínio do poder, a linguagem designa sempre algo que não é o vivido autêntico. É precisamente nisso que reside a possibilidade duma contestação completa. A confusão tornou-se de tal ordem, na organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se desvenda como uma impostura e um logro. Em vão um embrião de poder cibernético tentará pôr a linguagem na dependência das máquinas que controla, de maneira a que a informação se torne a única comunicação possível." O que os situacionistas não previram foi como a realidade seria inteiramente contaminada por essa forma de ficção dirigida e que digere por completo o horizonte de cada indivíduo. Em breve, será necessário pagar pacotes de extensão do vocabulário, conceitos mais finos, certas noções e termos serão abandonadas por serem tidas como nocivas, por poderem pôr em causa a eficácia programada. "O poder apenas fornece o falso bilhete de identidade das palavras, impõe-lhes uma licença de passagem, determina o seu lugar na produção (onde algumas visivelmente fazem horas extraordinárias); atribui-lhes, por assim dizer, uma folha de salário. Devemos reconhecer a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carroll, ao considerar, quanto a isso de uma pessoa decidir sobre o emprego das palavras, que toda a questão reside em 'saber quem será o dono' delas; nisso e em mais nada. E ele, patrão de vistas largas, afirma que paga a dobrar àquelas que emprega muito. Devemos pois entender assim o fenómeno da insubmissão das palavras, a sua fuga, a sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (de Baudelaire aos dadaístas e a Joyce) como sintoma da crise revolucionária global que se regista na sociedade." Hoje são cada vez mais raros aqueles que fazem um uso da linguagem segundo este ânimo insubmisso, ou até minimamente insolente. Combater a relação de dominação deveria implicar um desvio contra a eficácia e os quadros de previsão com o qual operam os algoritmos, e isto em proveito da linguagem, numa oposição ao informacionismo moderno, aos modelos de simplificação, que reforçam as lógicas de "comunicação" unilateral. Como vincam os situacionistas, "o poder vive de receptação". "Não cria nada, só recupera. Se ele criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, haveria apenas 'informação' pragmática. Nunca poderíamos opor-nos adentro da linguagem e toda a recusa seria exterior a esta, seria puramente letrista. Ora o que é a poesia senão o momento revolucionário da linguagem, e como tal não separável dos momentos revolucionários da História, bem como da história da vida pessoal?" Por isso vimos repetindo que não há mais clamorosa declaração da ineficácia de uma obra poética do que o momento em que esta aceita ser colhida pelos louvores oficiais, ver-se garantida pelo enredo institucional. Mas a poesia dos nossos dias não faz mais do que coleccionar os troféus que a reputam como inane - boa para consumo da população em geral. O mesmo princípio distingue uma verdadeira conversa. Como nos diz o poeta José Emilio Pacheco, "a conversa morre quando dizemos sim a tudo. Falar significa discordar. Não há troca sem controvérsia. O sermão e o dogma são estranhos ao ensaio. Não peço a um ensaio que confirme as minhas crenças ou preconceitos. Espero que ele abra outra porta, me faça ver o que nunca vi, ponha à prova tudo o que até então eu supunha". Hoje, a linguagem deixou-se absorver enquanto signo de confirmação, triunfam os discursos que fornecem falsos bilhetes de identidade, projecções constantes, diluentes. Neste episódio, e depois de tantas vezes termos embatido contra as limitações do entendimento das ficções financeiras, pedimos orientação ao economista que mais admiramos, aquele que melhor tem contrariado as impressões ociosas que vamos cumulando, como ferrugem analítica, e que assim trouxe a sua chave de fendas para nos apertar os parafusos. Embora se descreva como um "rafeiro reformista", Ricardo Paes Mamede tem sido a voz crítica mais constante e lúcida a servir de barragem contra as imbecilidades da classe liberal e da sua hegemónica ideologia. Tínhamos demasiadas perguntas, eis algumas respostas.
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    2:57:02

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Sobre Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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