PodcastsArteEnterrados no Jardim

Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Enterrados no Jardim
Último episódio

Episódios Disponíveis

5 de 123
  • A caderneta de cromos da cultura portuguesa. Outra conversa com Vítor Belanciano
    No dia em que a Sonae cortar a benemérita linha de vida que estende ao jornalismo português e o Público deixar de ir para as bancas, o Ípsilon ainda poderá fazer o pitch à Panini, safando-se de forrar o túmulo do jornalismo cultural, e com aquele sebo de rodízios que lhe é característico ser-lhe-á dada a oportunidade de produzir as várias temporadas do álbum de família da enxofrada cena cultural a que vamos tendo direito. Irradiando por meio de um sinal cada vez mais débil e para uma comunidade desintegrada ou submetida às lógicas de reprodução acríticas do consumo de massas, este suplemento vive graças à lógica de agenciamento das “figuras, figurantes e figurões” que compõem esse quadro, e o sistema agradece-lhe pela forma como consegue estabilizar tudo a um mesmo nível, naquela linha flutuante e deambulatória com que se ligam os dias e os juízos, segundo uma pretensão cosmopolita, fornecendo as fantasias em regime prêt-à-porter para a afectação de uma pose nos adros do nosso pequeno recreio social onde essas coisas contam. A propósito daquele número especial, que não deixou de nos fornecer matéria para algumas facécias, o que se mostra mais persistente nestas iniciativas é a jactância triunfalista. Dá a sensação que sempre que há a necessidade de corresponder a uma efeméride, nestas ocasiões só arregaçam as mangas para melhor se porem a cheirar a merda acumulada nas cavalariças. O que impressiona acima de tudo, e particularmente nos artigos que encenam uma panorâmica retrospectiva sobre o percurso do suplemento e o colam à própria evolução da cultura portuguesa no primeiro quartel deste século, que nunca chega a ser alvo de qualquer análise ou interrogação, é esse triunfalismo implicitamente e inutilmente publicitário. Aquilo que parecem ignorar estes promotores, tão habituados a despejar tinta sobre tudo o que prometa farra, é que o poder não precisa de propagandistas. “Se é poder”, assinala Alfonso Berardinelli, “impõe-se por si e, de facto, cada um já dele tomou nota”. “Alinhar-se com aquilo que se impõe é uma forma vácua ou perversa de moralismo”, adianta o crítico italiano. Em vez de uma capacidade de produzir um agenciamento de enunciados, de propostas que desafiem as expectativas, demasiadas vezes este suplemento parece resignar-se a uma postulação face ao que já se sabe. Daí a propensão para se auto-congratular por uma série de “apostas ganhas”, formulando mais umas quantas para seguir com esta lógica de casino. Se David Pontes reconhece que há hoje “sectores inteiros da cultura que correm o risco de desaparecer no silêncio”, e reforça que “sem eco não há cultura que, por falta de impacto, sobreviva”, depois, reclama para aquele suplemento um papel de enorme relevância no esforço de “relatar, descobrir e criticar expressões artísticas minoritárias, porque sabe que elas fazem parte da expressão máxima da diversidade humana”. Assim, é só por este suplemento desempenhar o seu trabalho de forma “quase solitária” que vimos retrocedendo, vendo a dificuldade de abrir o campo de possibilidades actuais de repensar este tempo, escapar do mundo que existe, criando as condições para a expressão de outros mundos possíveis. Com uma única excepção entre os textos que integram este volume, não há qualquer sinal de uma autocrítica, e mesmo o tom de certos artigos, quando parece neutro, é sempre promissor, tranquilizador e moderadamente profético. Só António Guerreiro abre um parêntesis em que vem denunciar que “o jornalismo cultural implodiu”: “pôs-se à mercê da publicidade cultural, com a qual passou a confundir-se” (…); “cúmplice da indústria cultural (dirá mesmo, com toda a convicção, que é impossível conquistar um lugar exterior a ela) e, por conseguinte, inscreve-se na sua lógica”. Ainda acrescenta que este género quase deixou de ser nomeado porque perdeu o seu antigo poder de irradiação, acabando por se submeter: “A ele sobrepôs-se a divulgação cultural, num contexto em que os objectos e os acontecimentos culturais aspiram sobretudo a ser divulgados, publicitados, recomendados.” Quanto às restantes análises, as poucas vezes que mantêm um compromisso de leitura das convulsões da época, acabam por reconhecer que o novo milénio não trouxe verdadeiramente descobertas novas, nem produziu obras que pareçam características de uma nova época. A maior e mais sintomática novidade é quantitativa: há muitíssimos produtores, “novos criadores” que se limitam a recombinar ou retocar velhas fórmulas, de forma cada vez mais contingente. Assim, os actores culturais, mais prolíficos do que nunca, são coagidos a dar provas de vida e submeterem-se aos protocolos do espectáculo de modo a obterem o selo e o género de aclamações que significam uma extensão do crédito a essa espécie de agonia em que vão resistindo as práticas artísticas. Mas se há algum autor verdadeiramente digno desse título, alguém capaz de causar verdadeira perturbação na matéria já dada, este é convenientemente negligenciado. Tudo o que não se sagra segundo as dinâmicas do mercado fica dependente destes processos de homologação, e acaba a mendigar os apoios de inserção destes técnicos sociais da cultura. Tudo isto apenas intensifica o regime das indústrias culturais, com a produção em série de conteúdos de consciência, informação, entretenimento, publicidade e propaganda. Neste episódio, e para andarmos de volta destas questões, voltámos a importunar Vítor Belanciano, que esteve presente em 23 dos 25 anos do Ípsilon, e que reconheceu que, depois de um convite para ser co-editor, acabou por perceber que “um agitador com sentido de independência, muito mais do que um pacificador do colectivo”, nunca seria o perfil adequado para gerir um elenco em que cada um escreve em nome próprio, competindo apenas pelo espaço. No fundo, e para se tentar fazer um balanço dos fracassos das nossas propostas culturais, talvez seja necessário reconhecer que vai continuar tudo por fazer, na medida em que o público não está dado, pois se a gente está aí, e há uma ânsia de reconhecer sinais e propostas que a unam, lhe dêem ficções cativantes, e que a agenciem como comunidade, como colectividade ou como classe, falta um jornalismo crítico que esteja em condições de forjar enunciados, esses que “são como os germes do povo que virá e cujo alcance político é imediato e inevitável” (Deleuze).
    --------  
    4:02:31
  • Escrever a história em mortalhas de cigarro. Uma conversa com Ricardo Noronha
    Fala-se muito de liberdade por estes dias. A todos os propósitos, celebra-se essa estafada ideia de que se gozam hoje conquistas feitas a grande custo pelas gerações que nos antecederam, mas talvez fosse importante colocar a mesma pergunta certa vez feita por Foucault: “Qual é o campo actual das experiências possíveis?” Se a liberdade se tornou meramente hipotética, uma espécie de abstracção, algo que partimos do princípio que gozamos, podemos ser levados a prescindir de testar essa convicção. Talvez nunca tantos se tenham saciado dessas promessas, sendo isso o suficiente para não irem mais longe nem testarem a sua disposição moral divergindo desse grande quadro de inércia que nos serve de referência.  Que potência exercemos diariamente, nem que seja numa condição virtual, questionando o enredo a que estamos submetidos? Talvez a liberdade se tenha tornado uma noção demasiado abstracta, sendo esse o principal elemento de dissuasão, quando tudo se processa num nível hipotético. De facto, somos todos muitíssimo livres. Mas talvez fôssemos menos se realmente passássemos dos princípios aos actos. No entender de Kant a liberdade “é a autorização para não se obedecer a nenhuma outra lei exterior que não sejam aquelas às quais pude dar o meu assentimento”. Se partirmos daqui podemos reconhecer que a tal liberdade potencial contrasta com a falta de ânimo para oferecer resistência às orientações que nos vão seduzindo, convertendo, coagindo. Talvez Gramsci fosse mais livre na prisão do que a maioria de nós o somos no nosso dia-a-dia. Leia-se o que Italo Calvino escreveu a propósito da edição das "Cartas da Prisão" do fundador do Partido Comunista de Itália: "[As Cartas] têm as características do livro de memórias e do grande romance: a sua amplitude e o cruzamento de mundos e de temáticas. O prisioneiro revolucionário analisa minuciosamente todas as pequenas manifestações da vida que consegue captar a partir do sepulcro da sua cela: os pardais amestrados, as flores da chicória, as fotografias das suas crianças. Ele analisa qualquer fenómeno cultural, do idealismo crociano aos romances policiais, formulando interpretações novas e úteis, utilizando também todo o seu património de memórias regionais, as lendas, os costumes, os dialectos da sua Sardenha, que revive com um gosto só aparentemente anedótico.” A liberdade está longe de ser um estado natural, e daqui decorre que esta tenda a esboroar-se assim que não haja um constante esforço de a levar a efeito. A lógica do poder passa sempre por produzir a timidez daqueles que lhe estão submetidos, e é evidente que, à medida que a revolução começa a desvanecer-se, a cair na rotina, deixa de vigorar como um acontecimento, atestando uma virtualidade que não pode ser esquecida. Hoje, todos os esforços no sentido de celebrar “as conquistas de Abril” fazem por substituir os cravos por rosas brancas, limitar o alcance da revolução e moderar o seu ímpeto, retirando-lhe toda a actualidade e força anunciadora de um desejo que está ainda por cumprir-se. O signo que tem vindo a afirmar-se cada vez mais e que pretende fazer-nos renunciar às experiências que foram possíveis durante o período de dezoito meses do processo revolucionário é o do 25 de Novembro, que, como assinala Ricardo Noronha, “assumiu a forma de um evento fantasmagórico porque os seus actores – os vencedores como os vencidos – projectaram sobre os acontecimentos tantas camadas discursivas que a sua interpretação se tornou impossível sem um laborioso trabalho filológico e arqueológico”. E acrescenta que este é também um evento fantasmagórico “porque a sua evocação quebra a ténue membrana que separa o passado do presente, transportando em si um juízo sobre tudo o que antecedeu e se sucedeu àquelas horas tão saturadas de ocorrências, condensando em si a história de todas as revoluções e contrarrevoluções”. Para Noronha a evocação desta data “assombra ainda os cérebros dos vivos, servindo a um tempo enquanto fábula moral e mito fundador, efeméride comemorativa e epígrafe fúnebre”. Na verdade, e contrariamente ao que diz a direita, não foi a possibilidade de uma ditadura de sinal contrário ao do Estado Novo que foi afastada, mas a própria construção de um repertório de acção política, num raro momento na nossa história em que ganhou expressão o poder popular através de inúmeras acções de democracia directa. Durante aquele período que, de um golpe de Estado militar, fez uma verdadeira revolução, o que se viu ganhar corpo foi “uma vaga tumultuosa de contestação, insubordinação, auto-organização e radicalização, que não só empurrou o Movimento das Forças Armadas para lá dos seus propósitos iniciais como abalou profundamente os alicerces do capitalismo português”, escreve Noronha em “A Ordem Reina sobre Lisboa”. “Durante dezoito meses, as ordens foram desobedecidas, as proibições desafiadas e as leis permaneceram no papel, enquanto inúmeras herdades eram ocupadas e várias empresas eram nacionalizadas ou entravam em autogestão. Tudo isto não pode ser menos do que inaceitável visto a partir deste presente caracterizado por uma crescente resignação e apatia, desde logo porque permite vislumbrar a possibilidade de um outro mundo e de uma outra vida. Comemorar o 25 de Novembro é também uma maneira de esconjurar a possibilidade de se voltar a repetir semelhante cenário, fazendo o luto pelo trauma que tantos conservadores ainda associam ao PREC.”
    --------  
    4:17:38
  • Uma boca com dentes de diferentes épocas. Conversa com Liliana Coutinho
    Noite insular, jardins invisíveis, imagens desgarradas e fendas por entre as quais ainda toca a alguns espreitar essa luz que dança reconciliando o homem com os seus deuses desdenhosos. Nas imagens possíveis traçadas pelo poeta cubano José Lezama Lima está o germe das suas eras imaginárias, de um outro tempo, feito de vincos, simetrias diamantinas, precipitações inesperadas, cortes, colagens. Estamos no âmbito de “um tempo não encarnado, o tempo que não fez História sobre a terra”. É aquilo a que ele chama “o tempo poemático, forma subtil de resistir sem fazer história”. Assim, em seu entender, a poesia gera uma temporalidade diferente, fruto da rebeldia do poeta que se nega a converter-se em matéria histórica e em pasto do sucessivo, mas é também fruto dessa recusa em acatar apenas uma versão das coisas, preferindo pôr-se a manejá-la, abrindo o tempo, trabalhando num compasso em que esta está sujeita aos próprios abalos de um mundo exterior convulso. Se este tempo poemático não marca a terra ou o homem com as dolorosas cicatrizes do tempo histórico, não deixa de fornecer uma síntese que se pode encarar no espelho, construindo a seu modo uma resistência, sendo “uma das mais poderosas redes que o homem possui para capturar o fugaz e para o animismo do inerte”. Seguimos a leitura de Abel E. Prieto, ex-ministro da Cultura cubano, um político que escreve ensaios sobre poesia e que com Lezama Lima aprendeu esse modo de investigar os grandes e pequenos afluentes da utopia e o seu transporte confuso. Ele diz-nos que se pode fazer um jogo mágico valendo-se de personagens e momentos históricos, desviando-os deliberadamente, combinando livremente as peças dessa História que nos deixou tanta pele cicatrizada, como se nos permitíssemos reabrir as feridas, explorando enlaces ocultos, dando assim espaço à formação de uma história convulsiva, e que, se não encarnou, mesmo assim foi capaz de despertar um movimento, sugerir uma perspectiva secreta, a qual persiste e vai “alcançando a sua infinitude ou absurdo criador ao diluir-se no banco de areia do tempo”. Prieto diz-nos que esta supra-história poética coloca de novo em campo extensões do tempo que foram esquecidas, que não puderam configurar-se, mas foram destruídas, e este esforço passa então por justapor aquilo que não chegou a realizar-se classicamente. Esta subversão das hierarquias é decisiva ao pensamento descolonizador de Lezama Lima, entendendo que não há porque se outorgar uma proeminência castigadora às etapas conclusas da história que se realizou, essas etapas que cumpriram o seu ciclo, nem nos limitarmos a ir buscar a estas as suas categorias gerais. Pelo contrário, o esforço passa por ir mais longe, até às insólitas fronteiras dessa história que não chegou a cumprir-se, a história possível, e mergulhar nesse jogo de infinitas possibilidades tentando perceber como as situações imaginadas engendram uma lógica de germinação que não perde valor nem cede pelo simples facto de viver à margem da história orgânica e poderosa. Neste sentido, para Lezama Lima, para se alcançar uma visão superior do processo histórico, deve propiciar-se a cópula entre a História e a Poesia. Algo de semelhante a isto é o que nos diz Musil nas páginas do seu grande romance inacabado… “Ora, se existe um sentido de realidade (…) então também tem de haver qualquer coisa a que possamos chamar o sentido de possibilidade. (…) Assim, poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, não dando mais importância àquilo que é do que àquilo que não é.” Fazendo saltos, se podemos projectar-nos no terreno tão instável do futuro, não é menos instigante reaver o passado como matéria para uma espécie de revisionismo convulsivo, sem receio de raiar o absurdo. E se se costuma dizer que estes métodos, e mesmo os próprios sonhos, são para aqueles que não conseguem aguentar a realidade, que não são suficientemente fortes para estar à altura dela, Slavoj Žižek faz uma inversão que acaba assim: “a realidade é para aqueles que não parecem suficientemente fortes para confrontarem os seus sonhos”. Para Ursula K. Le Guin viver no mundo real é muito mais do que estar imerso na realidade, e, na verdade, aquilo que nos exige a responsabilidade pelos nossos actos e sentimentos é uma imensa culpabilidade, pois se há tantas vidas-pleonasmo, ou paráfrases, elipses, sarcasmos, também há outras que, não podendo mudar o mundo nem determinar o acordo de vontades ao seu redor, derramam a sua frustração e aproveitam-se da imaginação para gerar essas sombras desertoras, reinos que ficam para aqueles que deram meia volta, não se ficaram à superfície da realidade… Não aceitaram da língua nem da pressa a injunção de uma obrigação de falar, fazê-lo mesmo que atabalhoadamente, representando-se a si ou aos outros através daquelas categorias gerais que tudo degradam, mas preferiram deixar as palavras habituais, aceitar o silêncio, até que algo de novo apareça, com a possibilidade de que esse algo de novo traga novos modos de nos relacionarmos. Neste episódio, e para seguirmos no encalço de Le Guin, nas suas explorações e nas cópulas que ela foi gerando entre as mitologias e a história, a ficção-científica e a poesia, nessa alforria dos géneros e com um ímpeto de constante e subtil subversão, contámos com a orientação de Liliana Coutinho. Curadora e programadora de Debates e Conferências da Culturgest, partimos do ensaio com que nos apresenta à obra da escritora norte-americana no segundo volume de contos que dela se publicaram entre nós, “Ela Tira-lhes Os Nomes e outros contos”, uma edição da Barricada de Livros.
    --------  
    3:48:38
  • A vingança dos excluídos da poesia. Uma conversa com Cíntia Gil
    Na contradição entre o tempo que passa e a eternidade que perdura, não devemos desapontar aqueles que nos procuram para nos encher de ouro a boca, vindos com outro balanço e outra razão, e que tantas vezes aproveitam algum enredo tempestuoso, sendo certo, como notou Borges, que a chuva é uma coisa que sem dúvida ocorre no passado. Devemos então definir uma resistência a partir desse espanto de que o tempo, a nossa substância, possa ser partilhado. Contra a obscenidade da evidência, e o próprio mundo, que hoje não parece existir senão em função da publicidade que lhe pode ser feita num outro mundo, o cinema propõe-se como uma arte da exploração do tempo, sendo capaz de reinstaurar o presente, e procura, assim, superar as imagens que não estão já do lado da verdade dialéctica do "ver" e do "mostrar", mas que se passaram inteiramente para o lado da promoção e da publicidade, ou seja, do poder. "O nosso trabalho será mostrar como os indivíduos, reunidos como povos na escuridão, punham a arder o seu imaginário para aquecer o seu real", escreve Godard, exaltando a era do cinema mudo. "E como acabaram por deixar apagar a chama ao ritmo das conquistas sociais, contentando-se em mantê-la em lume brando – é então o cinema sonoro e a televisão num canto da sala." Baudrillard espantou-se com essa espécie de fantasmagoria técnica, esse ritual de protecção daqueles que buscam por todos os meios afastar o silêncio e a noite, num receio de virem à superfície de si mesmos, e fala-nos da "televisão programada vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, e que muitas vezes funciona de uma forma alucinante nas salas vazias da casa ou nos quartos de hotel por ocupar". Dá o exemplo dessa sinistra espectralidade que encontrou em hotéis de beira de estrada por toda a América, e de um cujas "cortinas estavam rasgadas, a água cortada, as portas a bater; mas no ecrã fluorescente de cada quarto o locutor descrevia a subida da nave espacial". E depois acrescenta: "Nada há de mais misterioso do que uma televisão a funcionar num quarto vazio, é bastante mais estranho do que um homem a falar sozinho ou uma mulher a sonhar em frente das caçarolas. Dir-se-ia que outro planeta nos fala, de repente a televisão revela-se pelo que é: vídeo de um outro mundo, não se dirigindo no fundo a ninguém, libertando indiferentemente as suas imagens, e indiferente às suas próprias mensagens (é facilmente imaginável a funcionar ainda depois do desaparecimento do homem)." Num mundo sem as investigações e o labor que são próprios do cinema, das artes que resistem ao abandono da substância temporal, essas sínteses, cortes, montagens e extensões dolorosas que constituem um modo de fazer o seu próprio atraso, para se "refazer" e para se fazer, como nos diz Serge Daney, num mundo em que não somos já capazes de mostrar o acontecimento a suceder enquanto acontecimento, o real torna-se apenas essa indústria de tudo o que nos escapa, continuando a engrossar os elementos alucinatórios e a trivialidade das fantasias que nos atravessam e degradam todo o processo de consciência. Assim, estamos absorvidos num loop de uma realidade que, na forma como abunda em reflexos e em interpolações, estende uma distância intransponível, esse desfasamento que produz o fantasma. "Hoje em dia, nenhuma performance pode prescindir de um ecrã de controlo não para se ver ou para se reflectir, como a distância e a magia do espelho, não: como refracção instantânea e em profundidade", assinala Baudrillard. "O vídeo, em toda a parte, serve apenas para isso: ecrã de refracção extática que já não tem nada da imagem, da cena ou da teatralidade tradicional, que já não serve de modo algum para jogo ou para contemplação, serve para se estar ligado a si próprio. Sem esta ligação circular, sem esta rede breve e instantânea que um cérebro, um objecto, um acontecimento, um discurso criam ligando-se a si próprios, sem este vídeo perpétuo, nada tem hoje sentido. O estádio vídeo substituiu o estádio do espelho." Todas as ligações se destinam a conduzir uma energia que possa alastrar superficialmente, e isto a um ponto tal que os ecrãs estabelecem uma cadeia de reflexos ininterrupta, congelandoa realidade, não ficando dependente do acontecimento, substituindo-o ao gerar esse imenso circuito que já não se deixará demover do seu frenesim constante e que alcança uma des-sublimação espectacular de todos os nexos, das causas e até do próprio pensamento. Trata-se de um abandono da corporeidade, dos limites e das tensões físicas, da relação biológica, instaurando um tempo sem tempo, que já não obedece aos ciclos da mortalidade e regeneração. Assim, os pólos e as oposições dissolvem-se e o que força esse efeito de design total, que apaga qualquer atrito ou resistência, é a lógica da ligação. "Não se trata de ser, nem mesmo de ter um corpo, mas de estar ligado ao próprio corpo. Ligado ao sexo, ligado ao próprio desejo. Conectados às próprias funções como a diferença de energia ou a ecrãs vídeo. Hedonismo em ligação directa: o corpo é um enredo cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inumeráveis estúdios de reculturação, de musculação, de estimulação e de simulação que vão de Venice a Tupanga Canyon, e que descrevem uma obsessão colectiva e assexuada." Neste quadro de elisões que se concertam, a própria relação sexual torna-se um ritual arcaico, uma relíquia de um mundo em que as tensões ainda se definiam pelo gozo que se tirava em provar a diferença que se encontrava no outro, no campo do desconhecido. Num mundo em que tudo se converte ao mesmo, o circuito já não tropeça, não falha. E isto, num plano íntimo, acaba po corresponder a esse desejo de afastar toda a dor, todo o embate entre modos ou "ficções" defendidas por esse diferencial energético. "Houve um tempo em que as coisas levavam tempo para existir, através de processos lentos, penosos, dolorosos: era preciso tempo para construir, e esse tempo tinha valor", nota Daney. Mas hoje, pelo contrário, a urgência vai no sentido de alcançar imediatamente os benefícios, e isto significa destruir o campo artístico na sua capacidade de reaver um acontecimento, apossar-se dele por meio de uma linguagem, reapreciá-lo, produzir uma transformação do sentido. Há um princípio de sobrevivência que, ao ser levado a um extremo, põe em causa até o real, aplanando tudo. Baudrillard rejeita inscrever todo este fenómeno como expansão narcísica, alertando para o erro de se abusar deste termo na definição deste tipo de efeitos. "Não é um imaginário narcísico que se desenvolve em torno do vídeo ou da estéreo-cultura, é um efeito de auto-referência ilimitada, é um curto-circuito que liga imediatamente o mesmo ao mesmo, e portanto sublinha simultaneamente a sua intensidade à superfície e a sua insignificância em profundidade." Neste episódio, e no rescaldo de mais uma edição do DocLisboa, Cíntia Gil fez uma acostagem corsária para nos ajudar a encontrar um fio e uma razão mais funda nesse esforço de densificação do real que o cinema assume enquanto um dos seus processos de forma a integrar em nós o mundo enquanto experiência. Tendo dirigido aquele festival de cinema entre 2012 e 2019, esta programadora continua a reclamar esse papel de quem engendra e articula percursos como um modo de intervir e fazer cinema, procurando refundar um espaço crítico, que indaga e desassossega, precisamente para que o tempo possa ser reclamado de novo como essa substância difícil e que, mais do que ligações, nos fornece as possibilidades de resgatar a presença e essa zona activa, comum.
    --------  
    4:35:12
  • No funeral dos franco-atiradores. Uma conversa com José Soeiro
    Os nossos instrumentos de trabalho são a humilhação e a angústia, cada vez mais aperfeiçoadas, submetidos como somos a cada dia a rituais de aviltamento empregados para quebrar qualquer vontade de resistência. O cerco tornou-se especialmente cruel a partir do momento em que se concentrou em produzir uma fissura e assaltar-nos moralmente, espalhando em nós esse veneno obsidiante que é o medo, armado de uma ideia todo-poderosa que se limita a compor algo que se assemelha a uma política paranóica. Com a influência cada vez mais forte do sentimento de rivalidade, a maior das nossas vulnerabilidades é anteciparmos a traição dos nossos semelhantes, não podendo contar com a firmeza do carácter, nem mesmo do nosso. Espiamo-nos cheios de suspeita, pois, como alguém notava, ao fim de décadas de anestesia democrática e de gestão dos acontecimentos, de uma série de crises concatenadas, que enfraqueceram em nós uma certa percepção abrupta do real, desvaneceu-se o sentido resistente da guerra em curso. Em nenhum dos momentos das nossas vidas conhecemos o vigor da batalha, mas atravessamos um território imerso na escória de tantos sonhos, sem vislumbrar os confins deste mundo de pó e ilusões, sendo que em nós o tempo é sentido já como agonia, pelo hábito destas vidas de empregados cada vez mais subtraídas pelo aumento do tempo de trabalho e pela perda de autonomia. Estamos dominados por esse abandono da realidade, à medida que a técnica exerce o seu poder planetário, nivelando, homogeneizando, massificando, dessacralizando, uma técnica que nos mergulha em ritmos que estendem a irrealidade. Somos tomados pelas funções automáticas, pelos gestos que nos escapam, que fazem de nós espectadores da nossa própria actividade e funções. No entender de Silvia Federici, o automatismo tem sido “o produto de uma vida de trabalho infinitamente repetitiva, uma vida ‘Sem Saída’, como a da jornada laboral das nove às cinco numa fábrica ou num escritório, em que mesmo as férias são mecanizadas e se transformam numa rotina devido ao seu tempo limitado e à sua previsibilidade”. Federici vem demonstrando como um dos principais projectos do capitalismo tem sido a transformação dos nossos corpos em máquinas de trabalho, o que significa que “a necessidade de maximizar a exploração do trabalho vivo, também por meio da criação de formas diferenciadas de trabalho e coerção, tem sido o facto que, acima de qualquer outro, tem moldado os nossos corpos na sociedade capitalista”. O pior é que corremos o risco de sermos dilacerados por uma ordem económica que tem sempre no seu horizonte este regime do pleno emprego, uma sociedade que se organizou em função da centralidade do trabalho, ainda que todos os indicadores apontem para uma tendência de redução drástica do trabalho humano, que em tantos sectores passou a ser levado a cabo com maior eficiência por máquinas. Assim, como antevia Hannah Arendt, em 1958, em A Condição Humana, “o que temos à nossa frente é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, privados da única actividade que lhes resta”. Enquanto isso, toda esta dinâmica vai impedindo que se repensem as políticas de distribuição da riqueza, promovendo um alívio desta carga punitiva do trabalho, ainda entendido na sua função redentora, reduzindo o horário laboral e distribuindo de outra forma as funções que ainda estão a cargo dos humanos. Em vez de se implementar uma redução drástica do tempo de trabalho, assegurando a todos os cidadãos os meios e recursos necessários à sua vida, estamos submetidos a uma ordem cada vez mais opressiva, beneficiando a acumulação e radicalizando um princípio de degradação daquele que se vende em troca de um salário. Assim, não só as conquistas tecnológicas e todos os avanços na automatização e na inteligência artificial não revertem no sentido de um benefício comum e de adaptações no plano da organização social e política, como cada vez mais se promove esse salário moral em que aqueles que têm emprego, vivendo exaustos e sem tempo, tomados de uma fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, stress, incapazes de estabelecer fronteiras entre o trabalho e a vida, neste efeito de despersonalização e de impotência, requerem como consolo e forma de justificar todo o seu ressentimento uma possibilidade de assumir a denúncia e a perseguição àqueles que se encontram em situações de maior vulnerabilidade social e que passam a ser o alvo constante de políticas persecutórias e de ajuste de contas. Neste sentido, os sacrifícios humanos que são feitos nos nossos dias já não são pensados de forma a requerer o favor dos deuses, para apaziguar as suas fúrias, já não se entende que o sangue humano possa ser esse veículo de força vital, um tributo à altura do poder divino, mas tornou-se uma forma de saciar a própria necessidade de cada homem lidar com a sua devastação íntima lançando-a sobre outros. Assim, ao analisar as consequências da automatização, Bernard Stiegler vê uma sucessiva desintegração de todos os aspectos da vida social, sendo que a sociedade automática significa também a automatização dos espíritos e a prossecução de um modelo de irracionalidade vingativa. Deste modo, o que nos deve preocupar não é apenas o progressivo desaparecimento dos empregos, mas como a miséria crescente se irá saldar num clima de conflito difuso, em que não será possível já definir propriamente lados, mas irá gerar-se um quadro de predação e agressão constantes. Neste episódio, e para nos ajudar a reconhecer esse território cheio de paradoxos que é o mundo do trabalho, numa altura em que se preparam uma série de alterações à lei laboral no sentido de fragilizar ainda mais aquela que é já a parte fraca da equação, contámos com a orientação de José Soeiro, sociólogo e antigo deputado pelo Bloco de Esquerda, que se tem especializado na área do trabalho, precariedade e acção colectiva.
    --------  
    3:29:08

Mais podcasts de Arte

Sobre Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
Sítio Web de podcast

Ouve Enterrados no Jardim, O Homem Que Comia Tudo e muitos outros podcasts de todo o mundo com a aplicação radio.pt

Obtenha a aplicação gratuita radio.pt

  • Guardar rádios e podcasts favoritos
  • Transmissão via Wi-Fi ou Bluetooth
  • Carplay & Android Audo compatìvel
  • E ainda mais funções
Informação legal
Aplicações
Social
v8.1.1 | © 2007-2025 radio.de GmbH
Generated: 12/10/2025 - 4:41:39 PM