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Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Enterrados no Jardim
Último episódio

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5 de 116
  • Um país embalsamado entre fantasias podres. Com Pedro Levi Bismarck e João Oliveira Duarte
    No princípio tudo era mentira... Foi preciso o mundo com a sua teimosia infernal para imprimir em nós os caracteres de um fascínio que nos resgatasse da pobreza das ficções compulsivas entre as quais o medo se empareda, e foi quando aprendemos a retirar prazer desses destratos, a fintar o terror, que começou a emergir um sentido da arte, esse anseio exploratório que capturou o nosso génio colectivo, nos fez traficantes de lendas, dos relatos sobre seres que se embrulhavam com a vastidão, e traziam as marcas na pele, a estranheza nos gestos e os contornos algo delirantes de uma fábula que tanto nos cativava como um enredo inconstante, combativo, insatisfeito. A verdade era isso, uma história de que só ouvíamos os capítulos seguintes se a perseguíssemos como a uma presa. A verdade foge-nos, faz de nós caçadores, que vão enfebrecidos pela sua tão temperamental e esquiva canção. Mas o que a funda não é uma composição de factos indesmentíveis, e, sim, essa disposição daquele que a busca a movimentar-se, ir mais longe, querer dela algo mais. Com esse tumulto foi possível a alguns expandir a realidade noutras dimensões, com materiais do seu tempo e de outros, construindo essa força variante, capaz de acicatar o desejo. Pelo contrário, nos nossos dias encontramo-nos regredidos, mediaticamente embalsamados, arrastados para fantasias cada vez mais podres, reféns de um bando de mentirosos compulsivos, que, seja como for, de certeza medem o valor pelo efeito produzido. Convencidos dessa magia negra em que a vida não passa de uma cópia da imprensa, deram-nos o jornalismo como um ambientador e os modos reprodutivos do entretenimento como um vício que nos sedentariza, nos faz cair para dentro, ficarmos prisioneiros desses estímulos que se dirigem apenas ao que há de pior na nossa natureza. Estas coisas são explicadas nestes termos por Karl Kraus: "É que, na era dos que se deixam arrastar, o acto é mais forte do que a palavra, mas mais forte do que o acto é o eco. Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito. Na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária..." Num regime de subalternos como o nosso, por entre todo o luto que passou a ser o verdadeiro desígnio deste país, somos este resto senil de tantos séculos que não distingue já os espasmos da sua memória do zumbido das moscas sobre o seu cadáver, consolando-se a forjar a fraude da sua posteridade, produzindo um testemunho cada vez mais patético, desligado da realidade, invertendo a lógica do sentido de sacríficio. Desde logo, é cada vez mais difícil acreditar no carácter glorioso de uma glória que circula num mundo cada vez mais empobrecido, mais desgostante, piolhoso, abandalhado, trazendo os louros numa pochete. Por estes dias, os promotores deste castigo fizeram bem o seu trabalho, elevando Balsemão à categoria de mito, alguém que nunca foi outra coisa além de um traficante de influências, um dealer de aparências, chulo dos egos, que investiu tudo na idolatria e no temor, sabendo bem que a submissão adora travestir-se de liberdade. Aqui, não há apenas encenação, mas uma coreografia perfeita que transforma a fraude em inevitabilidade. A rede de Balsemão passa mais por um confisco da realidade, entre golpes de sedução e anestesia, entretendo-nos com um conto de fadas do qual não conseguem arrancar o cheiro a morto... Em vez de informação, parecem estender-nos um suborno à consciência, uma realidade submetida aos efeitos da propaganda, já não de ordem ideológica, mas como puro efeito de marketing, em que importa sobretudo fazer fé em todo o tipo de parvoeiras, deixar-se levar, viver os dramas insossos de um país ausente de si mesmo. E o que nos leva à loucura é a forma como neste país qualquer figurante se converte em figura de primeiro plano, desde que se mostre disponível para prolongar a impostura, com aquela conversa de empata das colunas amestradas de jornais que deixam a época exangue, subordinando os fins da existência aos meios de subsistência, como é próprio de qualquer jagunço, papagueando todas as superficialidades, fortalecendo essa zona de saturação que se decompõe num enredo em que cada um só actua com procuração da falta de carácter... Neste episódio, fizemos de tudo para estender ainda mais essas badaladas de primeira página a anunciar e incensar o defunto, a retratar as suas infinitas proezas, a vir com coisas de ontem, de nada, como uma grande pré-história, um passado fundamental, mas tudo tão azucrinante, num cerimonial pomposo, com as criaditas enchendo de ranho os trapos enternecidas com o CEO da Família Ltd, o Ministro da Gravidade Doméstica, o Oráculo do Controle Remoto, Barão do Jornalismo de Aluguer, Patriarca das Migalhas de Glória, mas depois, sem conseguirem sacudir aquele estilo afectado, esse tesão de mijo da prosa assanhada dos sacripantas, enaltecendo o registo cavalheiresco daquele que podia simplesmente ser mais um patrão sobranceiro e castrador, já querem elevá-lo a visionário, mais que um Magnata do Papel Higiénico com Manchetes que não aquecem nem arrefecem, foi um grande maestro democrata, prodigalizando os seus dotes, a sua fortuna, amontoando numa pilha as liberdades todas (qual feijoeiro mágico!) que lhe ficamos a dever, e abafando, como de costume, a trama das conveniências, a intriga promocional de toda uma camorra de medíocres, o encobrimento e as distracções para apagar as tropelias de ratazanas e de sanguessugas sem as quais, afinal, não há história nenhuma para contar, nem há História de Portugal, país que se arrasta há séculos de desfalque em desfalque. Desta vez, e para comer o bolo rei, pedimos ajuda a dois maganões, que já tinham passado por cá antes, e que se puseram a escarafunchar aquilo em busca da fava e a cuspir a fruta cristalizada para os lustres da salinha onde também nós velámos esse cachalote bonançoso, com aquelas manápulas cruzadas sobre o peito, subindo a prumo, subindo sempre, no sentido da eternidade.
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    3:53:05
  • Entre burocratas nostálgicos, arrivistas e embusteiros. Outra conversa com António Brito Guterres
    As eleições não passam hoje de um teatro que nos permite enternecermo-nos connosco próprios, com a degradação da nossa condição política, fornecendo uma liturgia sentimental, um gesto de auto-comiseração cívica. O voto tornou-se um placebo de pertença, e, ao sair da cabine, reconfortados, acreditamos ter feito algo, ter participado... Votamos como quem acende uma vela à memória do livre-arbítrio. Ali procuramos, com devoção arqueológica, os traços do antigo rosto humano da história. Cada boletim é um pequeno ex-voto ao passado, um souvenir da época em que o mundo ainda parecia responder à vontade humana. No acto de escolher, fingimos que há escolha; no cerimonial da urna, representamos a nostalgia da soberania, a crença de que a história ainda nos consulta. O eleitor é um espectro devoto que, numa função rememorativa, visita o túmulo da liberdade e depõe uma flor. As eleições são, assim, uma forma de terapia colectiva, servindo para converter a impotência em fé cívica. Ali, o sistema concede-nos o consolo da forma, enquanto decide, em silêncio, a substância. O voto é o modo mais resignado de nos reconciliarmos com a nossa irrelevância. Enquanto isso, o poder transfere-se, e talvez nunca se tenha decidido tão longe, tão alheio às nossas urgências. A revolução hoje é algorítmica: não se faz nas ruas, mas nas camadas invisíveis do código. É o próprio capital que programa a mutação perpétua do mundo, dissolvendo as formas estáveis da vida, da linguagem, da percepção. Nenhum comité central, nenhum messias, nenhum discurso inflamado; apenas redes, fluxos, instruções que se multiplicam como insectos luminosos no interior da máquina. Os novos Lenines não precisam de povo — bastam-lhes dados, e a vertigem do controlo. São criaturas que emergiram das fendas do sistema financeiro global, após a última crise de liquidez ontológica: seres anfíbios que aprenderam a respirar no vazio e a nutrir-se da volatilidade. O capital, esse demiurgo sem moral, descobriu o modo de acelerar o tempo, de converter cada partícula de vida em movimento, cada átomo de desejo em fluxo. O que chamamos “crise” é apenas o batimento cardíaco do sistema, o seu ritmo vital. As ruínas são o seu habitat natural, e nelas se move com a destreza de um vírus que aprendeu a usar o próprio sistema imunitário do hospedeiro para se multiplicar. Trata-se de uma inteligência adaptativa, uma espécie de parasita que aprendeu a metabolizar o desastre. Tudo o que o ameaça é reabsorvido como matéria de inovação. Assim, as novas lideranças são híbridos de misticismo empresarial e pornografia mediática: evangelistas de produtividade, profetas do desempenho, pornógrafos do sucesso. Falam de propósito, de regeneração, de transcendência… Embusteiros, efabuladores, mestres do reviralho, alquimistas do lucro ilusório, pregadores de volatilidade, xamãs do derivado, domadores de zeros e uns, arquitectos de bolhas espectrais, cartógrafos de ruínas financeiras, faquires do fluxo de capital, ilusionistas do valor, conspiradores do invisível, buriladores de consciência colectiva, mercadores de promessas quebradas, prestidigitadores da percepção, manipuladores de massas digitalizadas, embalsamadores de sonhos líquidos, taumaturgos do risco e da especulação, poetas da fraude, sacerdotes da liquidez, prestidigitadores da ontologia mercantil, e profetas do caos desregulamentado. O lucro tornou-se um sacramento; o poder, um êxtase. Entretanto, a esquerda, paralisada pela nostalgia da sua própria moralidade, converteu-se numa administração técnica da catástrofe. Gere as ruínas comovida consigo mesma, sendo prudente, enquanto o capital prossegue o seu labor alquímico de dissolução total. Defendendo o humano, o sustentável, o limite e a lógica, esta esquerda responsável tornou-se o elemento conservador de um sistema cuja energia vital é a transgressão. A sua resistência ética funciona como suplemento moral: o espelho que legitima o adversário. Sem ela, o capitalismo perderia a imagem de inevitabilidade que o alimenta. O que resta da esquerda é um sentimentalismo de gestão, um humanismo protocolar. E neste momento o capitalismo atinge, enfim, a sua fase gnóstica: já não produz mercadorias — produz mundos. A cada iteração fabrica não apenas novos mercados, mas novas percepções, novas realidades. A informação converteu-se em matéria-prima da existência, e a finança especulativa é agora a metafísica do nosso tempo. Os seus operadores são os novos xamãs da volatilidade: manipulam não apenas números, mas as condições de percepção, fabricam e desfazem o real como se este fosse uma bolsa flutuante. A fraude não é desvio ético: é o seu método e a sua fé, a sua gramática e o seu fôlego. O que era sólido já não se dissolve simplesmente no ar, antes serve para aprimorar o interface. O sujeito, fragmentado, responde em reflexos: reage, partilha, vota, comenta. Pouco mais faz. Tornou-se mais uma entre inúmeras existências parcelares, respondendo celularmente ao estímulo. Cada gesto individual é absorvido, reinterpretado, reprogramado, e essa constante digestão da experiência constitui o verdadeiro poder — um poder sem rosto, sem centro, sem consciência, mas revolucionário na sua continuidade, porque reinventa incessantemente as condições do mundo, sem nunca precisar de um sujeito que o deseje. Deste modo a utopia tornou-se indistinguível da especulação, e a imaginação política foi convertida em derivado financeiro. A revolução venceu, mas ao serviço do capital, e o triunfo é de tal modo absoluto que já ninguém o reconhece como tal. Neste episódio e para não nos ficarmos pelo tipo de análise que apenas rodeia esta fantasmagoria, quisemos deixar a ressaca, puxar o lençol e sacudi-lo, pô-lo a arejar. Para nos ajudar a escapar das grelhas de quem comenta mais este episódio da telenovela apegado ao regime mais emocional, pedimos a assistência a um operador que conhece bem o território, a relação directa entre aqueles que preferem fundar a realidade cosendo os pedaços da vida no seu quotidiano, cortando com este quadro de anemia existencial. Mestre sem grandes cerimónias, António Brito Guterres deu-nos guarida e fez-nos a visita guiada pelo seu museu privado, repleto de instrumentos de corte de luz e dos outros sistemas.
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    3:30:25
  • Livralhada, alquimia, terror e verdade. Uma conversa com David Teles Pereira
    Desde a invenção de Gutenberg até ao actual quadro de proliferação absurda, dessa obesidade editorial que fez dos livros mais outra categoria entre os produtos de consumo, os séculos de lenta fermentação das linguagens e conceitos estão aí como destroços a flutuar à superfície de uma piscina, a saque para os fins de uma mitologia de bric-à-brac, tacanha, cavando uma fossa, um largo intervalo que poderia ligar um título de Dickens a outro de Balzac: Grandes Esperanças e As Ilusões Perdidas. Depois da engrenagem ter entrado em delírio com a ideia de progresso, sentimos que começa a esgotar-se até a promessa de sentido. O futuro viu-se absorvido pelo presente contínuo das infinitas mastigações distractivas, e tememos, com uma lucidez amarga, que o amanhã não seja senão uma versão ainda mais ignara disto mesmo. Abrir as redes sociais, acender um ecrã, deslizar o dedo por um fluxo interminável de imagens e frases truncadas produz hoje a sensação de que em toda a parte se rompeu o pacto social: regressámos ao estado de natureza, recaímos na barbárie luminosa do comentário instantâneo. A cada notificação, uma crispação; a cada opinião, uma faúlha de ódio. Alguns, como outrora advertira Sciascia, veriam nisto a erosão última da palavra escrita — o seu desgaste até à transparência, até que já nada nela resiste ao ruído e à velocidade. Existíamos — lêssemos ou não — dentro de uma sociedade literária, onde os argumentos, as formas de arquivo, as listas e até os modos de enunciação provinham do enredo dos textos, da composição e ordem que se alargava a partir das bibliotecas, como se ali estivesse o núcleo de uma trama com possibilidades de expansão até ao infinito. Mas as imagens… essas formas que serviam de ilustração, um esboço para catapultar o impulso ou um eco, começaram a reproduzir-se como uma praga, a invadir o centro, a degradar o eixo do imaginário, o seu movimento de rotação e translação, que acabou por se fixar, a realidade encadeada pelo seu substituto. Saturado, o olhar já não mergulha no interior em busca de uma alucinação estupenda, mas fica agarrado ao estímulo; já não lê, absorve-se. A narrativa dissolve-se em fragmentos visuais, o tempo perde espessura, e o mundo, reduzido a ecrã, já não se conta: actualiza-se. Como escreve José Emilio Pacheco no ensaio do qual partimos para esta reflexão, “um mundo sem leitura é um orbe em que o outro só pode surgir como inimigo”. “Não sei quem é, o que pensa, quais são as suas razões. E, sobretudo, não possuo palavras para dialogar com ele. Por isso, só me é possível percebê-lo como ameaça.” Hoje tudo reemerge com o brilho artificial de outra Disneylândia, como nostalgia daquilo que não vivemos e nunca foi nosso. Mas é pior do que isso: a nostalgia tornou-se uma função sistémica, uma engrenagem exasperada que anula o próprio passado, convertendo-o em matéria-prima para as retrotopias do presente. O que antes era memória transforma-se em decoração, em cenário temático de um mundo sem recordação. Não espantará, pois, que dentro de alguns anos surja um parque temático consagrado aos livros — simulacro final de uma experiência extinta. Entre nós, já se ensaiou essa utopia domesticada na aldeia literária de José Pinho, em Óbidos: gesto audacioso e melancólico, como quem ergue uma biblioteca dentro de um aquário. Não é possível falar destes assuntos sem enfrentar a dúvida sinistra: defender hoje o livro e a leitura não equivalerá, afinal, a reforçar a charanga, o enredo trapaceiro de uns e umas sempre à cata das verbas, dos fundos de desenvolvimento, ávidos por os converter em festivais de miragens concentradas, todos estes certames onde o culto do autor, exibindo-se como produto, obsta a que se leiam e discutam os textos? “Quando comecei a escrever, ensinaram-me que o eu era odioso; o elegante e o edificante consistia em empregar sempre o nós. No fundo dessa regra de boa conduta literária residia a ilusão de que existia uma comunidade de pessoas ilustradas ou que aspiravam a sê-lo”, adianta Pacheco. “Partilhavam um vocabulário, um código e algumas ideias gerais acerca daquilo que, neste domínio, constituía o bem comum.” Agora, o intolerável — e por vezes grotesco — é falar na primeira pessoa do singular, submergir nesse regime autobiográfico que fez da autoficção um modelo universal de salvação e comércio. Cada fragmento de vida converte-se em dogma, cada emoção em mercadoria moral, cada exposição em gesto de legitimação. O mundo exterior, os tantos que se sentem parte de uma comunidade privilegiada por aderirem a este regime mimético, participam do mesmo culto narcísico: repetem-se, confirmam-se, citam-se mutuamente como se a autenticidade fosse uma forma de poder. Assim, o “eu” transforma-se em tirania discreta — um império de pequenos despotismos sentimentais, onde cada confissão exige aplauso e cada dor privada reclama estatuto de verdade absoluta. Neste episódio, tivemos connosco o David Teles Pereira, elemento da formação original dessa banda sertaneja chamada Língua Morta, em que chegou a lançar alguns êxitos supreendentes como Coração Anacoluto, Beijo Heteronímico, Livro do Desassossego com Forró, O Guardador de Galinhas Selvagens, Balada do Espantalho Sonâmbulo, Sinais de Fogo no Pijama do Lobo. Veio falar-nos de políticas públicas para o sector do livro, e ainda de Lovecraft, Carl Schmitt e outras profanidades que não conseguimos transcrever nem arrumar neste tipo de categorias.
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    3:20:36
  • Os peixes solúveis e o despotismo rococó. Uma conversa com António Tonga
    Poucos se perguntam o que resta do homem, que é feito dele passados estes últimos dois séculos de abastardamento do espírito, esse ser cada vez mais inapto, que se enreda nas suas justificações, que se adapta seja como for, se safa, dê por onde der, com essa capacidade de levar a vida inteira num longo estertor. Mas a alguém deveria intrigar esta estagnação dos órgãos, à medida que o horizonte se nos escapa, como vamos aperfeiçoando a nossa corrupção, as habilidades mesquinhas, a farsa, a sórdida trama, sempre neste embrutecimento das faculdades, cobrindo tudo com um sorriso petrificado. O instinto de sobrevivência deu lugar a um turvo ofício de entranhas, a estes seres imensamente cautelosos, viciados no seu próprio terror, vítimas de uma subjectividade exagerada, que levam os dias negociando termos de forma a esquivarem-se a qualquer encontro com o perigo. Deveríamos fazer um esforço por compreender o que vem a ser este ser sujeito a uma ocupação que o tornou tão profundamente servil, perfeitamente adaptado a uma ética inteiramente fundada sobre o valor mercantil, a honra do trabalho, os desejos comedidos, a brutalidade instintiva, e a morte, esta que nos segue tão de perto, e manca de pequenez em pequenez. “Tornar-se tão insensível e portanto tão manejável quanto um tijolo é aquilo a que benevolamente convida a organização social”, diz-nos Raoul Vaneigem. Ele denuncia a imensa máquina de condicionar, e explica a ausência de um ânimo e de um enredo tumultuoso que favoreça a transformação com a falta de sinais inspiradores ao nosso redor. “Face à minha prisão actual, o futuro não tem interesse para mim.” No fundo, o capitalismo cria um conflito dentro de cada um de nós, uma divisão entre si e si mesmo. Temos sempre alguma justificação na ponta da língua, uma mentalidade de servos, habituados a serem sacudidos ao virar de cada esquina. Constantemente sujeitos aos interrogatórios, estamos sempre disponíveis para abrir o livrinho com a nossa contabilidade mais íntima. Repare-se na expressão, nos modos mais comuns, nesse constante ensaio com que cada um se desfia a si mesmo, como se estivesse a meio de algum desses exames de rotina, ou fazendo por se apresentar nos tantos concursos, providenciando sobre qualquer tópico uma opinião habilidosa, assumindo a pose de forma a oferecer o melhor ângulo a qualquer montra, como se a sua imagem estivesse a ser captada pelas câmaras, esse rosto de transcendental e eterna inutilidade que põe um tipo quando faz de produto. Vaneigem diz que o sentimento de humilhação difuso que nos persegue nada mais é que o sentimento de ser objecto. Em seu entender, não somos escravos dos nossos desejos tanto como o somos da crença na felicidade dos outros, “uma fonte inesgotável de inveja e ciúme que faz experimentar por intermédio do negativo o sentimento de existir”. “Invejo, portanto existo. Apreender-se com base nos outros é apreender-se outro. E o outro é o objecto, sempre. De tal modo que a vida se mede pelo grau de humilhação vivida. Quanto mais escolhermos a nossa humilhação, mais ‘vivemos’, mais vivemos com a vida arrumadinha das coisas. Essa é a manha da reificação.” Isto explica todos esses esforços empreendidos para mascarar o nosso desespero. O que é mais doloroso é pressentir esta culpa face a si mesmo, todas as nossas tentativas para dissimular o esfarelamento dos valores, a ruína das existências, a inautenticidade dos nossos gestos. Por isso, no entender do autor de “Arte de Viver para a Nova Geração”, “as crises que sacodem o mundo não se diferenciam fundamentalmente dos conflitos em que os meus gestos e os meus pensamentos se defrontam com as forças hostis que os travam e os desviam”. O capitalismo significa um colapso da própria consciência humana. Se pudéssemos ganhar alguma distância em relação a nós próprios, se nos escolhêssemos como inimigos, nada nos daria maior prazer do que cuspir nisso a que, por mera afectação, dizemos ser a nossa alma. Gostamos de manter o quarto na penumbra de forma a que as formas do lixo que nos acusa não se possam distinguir, e então admiramos os ecos de outro tempo, o tempo que já foi. Bate-nos uma saudade estúpida de um mundo capaz de produzir em nós algum temor, uma “saudade dos tempos da juventude antiga, dos sátiros lascivos, dos faunos brutais” (Rimbaud)… Voltamo-nos para esses reflexos e para a pouca água que resta à superfície de alguns textos, e repetimos a estranha ordem de palavras que parecem ir além daquilo que somos capazes de sentir… "se viesse um homem ao mundo, hoje, com/ a barba de luz dos patriarcas, só poderia,/ se falasse deste/ tempo, só poderia/ balbuciar balbuciar/ sempre, sempre,/ só só" (Celan). O isolamento é o pior castigo e, no entanto, só através dele podemos fazer esta espécie de luto em relativa paz. “Para sobreviver à uniformidade que nos cerca, a única opção é reconstituir sem parar o nosso próprio mundo interior, como uma criança reconstruiria por todo o lado a mesma cabana. Como Robinson, reproduzindo o seu universo de merceeiro na ilha deserta, com a diferença de que a nossa ilha deserta é a própria civilização e de que somos milhões a desembarcar incessantemente” (Comité Invisível). Dito isto, o pior seria se nos contentássemos com a ridicularia daquilo a que chamamos solidão. Para nos pronunciarmos orgulhosamente sós ainda teríamos de ser uns quantos, para somarmos um Robinson convinha que naufragassem de uma vez largas centenas, e pelo menos uns sete, nove ou até uma dúzia se safassem, constituindo uma pequena camarata na tal ilha, isto para compensar a forma como as nossas almas parecem ser já meros fragmentos, estilhaços de uma qualquer unidade. Não demoramos muito a desconfiar como mesmo esses períodos de abatimento são um pequeno teatro que representamos para benefício da catástrofe da nossa personalidade, que há muito deixou de nos parecer minimamente bela, cativante, abrangente. Neste episódio, juntou-se a nós um tipo que, para coçar-se, não precisa de inventar pragas delirantes nem patéticas, e que veio trazer-nos um embalo mais largo na sua relação com o tempo, com a história, com a herança daqueles que estão dispostos a prosseguir cada dia, travando uma batalha atrás de outra, denunciando os tantos desdobramentos e ecos do colonialismo, e de todos os modos de exercer poder de forma violenta, estabelecendo hierarquias degradantes, e isto sem entrar nesses jogos de palavras cruzadas em que Vaneigem viu a esquerda triturar-se. Activista anti-racista, membro fundador do colectivo Consciência Negra, e um entre as centenas de milhões de herdeiros da luta visceral dos povos africanos pela sobrevivência e por uma África livre do esmagamento capitalista, António Tonga juntou-se a nós para discutirmos o que possa ser uma acção consequente e formas de organização e luta que não se deixem reduzir ao habitual esquema burocrático.
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    3:43:45
  • Dos sem-terra aos porcos-mealheiros. Uma conversa com Paula Godinho
    Estamos a assistir nos nossos dias ao advento das primeiras gerações sintéticas. Seres que se pretendem ver desencarnados, a alcançar um plano de elevação que se prende com a hipótese de flutuar num plano etéreo no qual tudo será disponível, ilimitado. Mas como a internet já o demonstrou, esses oestes sem lei digitais são zonas onde há muito tudo foi já predeterminado. E se, como nos diz Bachelard, “querer, é querer o que não se pode”, esse é um campo de anulação dos próprios sonhos e das formas de resistência a partir do imaginário. Poderíamos mesmo sonhar desligados dos impulsos que o corpo nos oferece? Numa das melhores profecias sobre o inferno que nos aguarda, Borges lançou esta hipótese: “Sonhará um mundo sem a máquina e sem essa máquina, o corpo. A vida não é um sonho, mas pode chegar a ser um sonho.” Este sonho começa a configurar-se nos nossos dias, mas, longe de ser uma libertação, parece um projecto de anulação da experiência. O Talmude diz que mais vale um dia nesta vida que uma eternidade no mundo que se segue. Mas o facto é que a própria realidade começa a ser pensada cada vez mais como doença ou, pelo menos, como ameaça. Ora, para compreendermos esse além que hoje nos é prometido, devemos prestar atenção às fantasias mórbidas que por todo o lado saturam o nosso campo visual, deter um olhar cheio de suspeita diante desta sobre-imposição do design a todas as esferas da vida, num momento em que a aceleração dos efeitos de troca leva a que a desorientação geral sirva para reforçar os impulsos programadas. Assim, toda a incerteza, todos os elementos de fragilidade e auto-recriminação, bem como a sensação da falta de propósito das nossas existências, levam a que a interioridade e a própria consciência se tornem zonas demasiado dolorosas. Provocam uma vertigem com a qual estamos a deixar de saber lidar, restando este virar do avesso, esta tentação de buscar uma ordem de beatitude ao nível das superfícies. Num momento em que nos sentimos fulminados por esta devastação colectiva a que chamamos realidade, tudo nos empurra para dentro, para formas de isolamento, e o corpo torna-se o destino e parece consumir todo o quadro das nossas ansiedades. Dos cuidados constantes com a imagem às dietas e suplementos, ao esforço para atingir medidas ideais, o culto passou a ser exercido nos ginásios, nas mesas de operações, com as cirurgias e toda a panóplia de intervenções a assumirem o peso de uma nova liturgia. Bernard Andrieu escreveu que “o corpo é a nova religião do século XXI”: híbrido, desnaturalizado, sujeito a metamorfoses sem fim, tornou-se objecto de uma promessa de salvação. Em “Crimes do Futuro”, Cronenberg encena precisamente este culto: a carne aberta é o sacrário, os bisturis são as mãos sacerdotais, a beatitude já não se procura no invisível mas na pura visibilidade — no espectáculo do corte, na exibição da incisão, no êxtase do que a imagem retém e multiplica. A religião desloca-se do mundo espiritual para o terreno da estética, e esta é quase invariavelmente de ordem narcísica. O corpo submete-se inteiramente ao design, surge como interface. Baudrillard parece ter profetizado a forma como a simulação absorve o real até que o corpo não é senão um ecrã onde se projecta a ilusão da vitalidade. Em breve, e face a um horizonte definido pela carência, pela decadência, pela violência, pelo entretenimento extremo e por catástrofes ambientais desencadeadas por nós, já não haverá margem para nos reconciliarmos com a natureza, restando apenas a reprogramação infinita, a carne como software. As vísceras tornam-se design de interiores, um mobiliário íntimo a ser remodelado. Nega-se a transcendência, restando-nos a imanência absoluta da imagem, a vertigem de um narcisismo que se alimenta do vazio. Este culto do corpo pós-natural é a contrapartida simbólica da devastação planetária. Com o adensar da catástrofe, em vez de enfrentá-la, a energia é deslocada para a construção narcísica de uma pele artificial, de um rosto filtrado, de um corpo reprogramado. Multiplicam-se as próteses, desenhamos novos contornos, fazemos dele um laboratório de constantes mutações, um objecto de culto devotado à ilusão de permanência no regime das imagens. A operação cirúrgica devém assim sacramento, inscrição visível da fé na técnica, tatuagem de um mundo que só se reconhece no brilho do artifício. O paradoxo é que esta fuga não conduz a um renascimento, mas a uma duplicação infinita: o corpo já não é carne, é simulacro, vitrina, holograma de si mesmo. O humano apaixona-se apenas pela imagem que reflecte, já não pelo sopro da vida que a atravessa. Com tudo isto, a natureza perde consistência, é um ruído distante, um pano de fundo em dissolução. Ao mesmo tempo, toda a degradação planetária se traduz em espectáculo, e cada catástrofe ambiental encontra o seu correlato narcísico no desejo de remodelação. Quanto mais o mundo apodrece, mais se purifica o corpo-imagem. O delírio é este: acreditar que se sobrevive ao colapso não protegendo a terra, mas cultivando a aparência. É um culto sem transcendência, e a cada incisão, a cada retoque, acredita-se que se derrota a morte. Na verdade, apenas se escava mais fundo a distância em relação ao real, essa devastação que continua a corroer o planeta. A religião do corpo é, afinal, a máscara última de uma civilização que escolheu amar a sua própria simulação e abandonar a terra que a sustenta. Mas tudo são reflexos condicionados, e a impotência, a sensação de separação, de diminuição do alcance, de incapacidade de ter uma acção decisiva, tudo isso é programado. O vazio no que toca à esperança, como nos diz David Graeber, não é natural. “Precisa de ser produzido. Se quisermos realmente compreender esta situação, temos de começar por entender que os últimos trinta anos assistiram à construção de um vasto aparelho burocrático para a criação e manutenção do desespero, uma espécie de máquina gigantesca concebida, antes de mais, para destruir qualquer sentido de futuros alternativos possíveis.” Esta frase surge em epígrafe ao livro de Paula Godinho, “O Impossível Demora Mais”, e às tantas a autora estende esta reflexão: “Numa ordem do mundo actual marcada pela teologia da neoliberalização, o futuro parece uma condenação, enquanto as práticas de resgate de outras possibilidades são encaradas como desordem, numa caminhada para o abismo. Agita-se a bandeira do final de todos os processos que pretenderam construir novos projectos de sociedade que terminaram em distopias, vistos como sinais de ingenuidade de alguns.” Antropóloga com vários anos de experiência em campo, Godinho tem-se aplicado em recolher testemunhos e experiências daqueles povos que não se renderam nem ao fim da história nem às coacções do ideário apocalíptico que trabalha para nos convencer da nossa impotência, e veio trazer-nos o seu catálogo com ramos de oliveira e outras espécies, avistamentos de terras futuras.
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    3:56:21

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Sobre Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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